Marcos Bagno Texto oferecido como material para reflexão e debate para o programa “Salto para o futuro”, transmitido pela TVE-Rio em 15 de junho de 2000, com participação do autor.
– Léo tem nove anos e é filho de um médico amigo meu. Um dia desses, depois do almoço, o menino disse assim ao pai:
– Já que você é médico, pode ver se tem alguma coisa errada na minha língua?
– Claro, filho. Mostra ela pra mim. Examinada a língua, não havia nenhum problema com ela. Foi a vez do pai perguntar: – Por que você achou que tinha alguma coisa errada?
– Porque hoje na televisão um moço com cara muito séria disse que “a língua do brasileiro vai muito mal”. Minha professora já tinha falado isso antes. Como eu sou brasileiro, achei que a minha devia estar doente também. Quando ele me perguntou o que dizer ao filho, respondi:
– Você deve dizer ao Léo que ele não tem problema nenhum. O moço da televisão e a professora é que estão com uma doença muito grave e altamente contagiosa.
– Ah, é? Que doença? – perguntou meu amigo, espantado.
– Preconceito lingüístico.
– Preconceito lingüístico? Isso existe? E quais são os sintomas?
– Achar que “brasileiro não sabe português”, que “português é muito difícil”, que “o pessoal sem instrução fala tudo errado”, acreditar que a língua portuguesa é apenas aquilo que está nas gramáticas, nos dicionários e nos livros didáticos…
– E não é?! – mais espantado ainda.
– Claro que não. Aquela é apenas uma das muitas variedades de língua portuguesa que existem, aliás uma variedade ultrapassada, que ninguém na verdade usa, nem mesmo os escritores de hoje, e que, justamente por isso, parece ser tão difícil.
– Eu nunca tinha parado para pensar que a língua pode ficar ultrapassada…
– E por que não? Afinal, tudo no mundo e na vida da gente está sempre mudando, não é? Com a língua é a mesma coisa. Um livro de medicina de 1900 não serve mais para você clinicar. Uma gramática de 1900 também não serve mais para explicar a língua. O problema é que até hoje essas gramáticas velhas é que são usadas nas escolas, só que com capa nova e desenhos coloridos, para disfarçar a idade.
– Mas aquele moço da televisão parece saber tão bem das coisas!
– Ele só diz o que outros gramáticos feito ele já disseram antes. Não é ciência, ele não apresenta nenhum avanço em termos de idéias sobre a língua, é só repetição de doutrinas antigas, que não têm mais nada a ver com a realidade de hoje. Se decidisse pesquisar a língua usada de fato pelos brasileiros, inclusive pelos escritores de hoje, ele ia levar um baita susto!
– Quer dizer que a língua do brasileiro não vai mal?
– Ela não vai nem bem nem mal. Ela apenas vai.
– Como assim?
– A língua segue seu rumo, sua evolução natural, como todas as demais instituições e manifestações da cultura e da civilização. E para haver evolução, tem que haver transformação e mudança. Gostem os gramáticos ou não.
– Puxa vida… – suspirou meu amigo. – É a primeira vez que escuto alguém falar assim dessas coisas.
– Não me espanto – eu disse. – A Gramática Tradicional, que é o conjunto das doutrinas que até hoje dominam o ensino da língua, tem mais de dois mil anos de existência, nasceu antes de Cristo, no mundo grego. Ela apareceu como uma tentativa de estudar o uso da língua feito pelos grandes escritores do passado. Ao escolher estudar a obra desses grandes escritores é que a Gramática Tradicional fez surgir o preconceito lingüístico que encontramos hoje em dia.
– Por quê?
– Porque, escolhendo estudar apenas a língua escrita, e ainda assim, escrita apenas pelos grandes escritores, a Gramática Tradicional deixou de fora todo o universo da língua falada, que é a língua primeira, primária, primordial, e também todos os demais usos da língua escrita, usos práticos, corriqueiros, diários que não buscam atingir uma perfeição artística.
– E qual foi a conseqüência disso, dessa escolha?
– A conseqüência é que, com o passar dos séculos, ficou cada vez mais forte a cobrança, por parte da escola, de que todo e qualquer cidadão, em toda e qualquer ocasião de uso da língua, obedeça às regras gramaticais empregadas pelos grandes escritores. Ora, isso é simplesmente impossível, além de ser também irracional. Para cada situação comunicativa, a pessoa tem que se servir de um estilo de língua, de uma modalidade de uso.
– Agora estou percebendo… – disse o pai do Léo. – Foi daí então que apareceu essa idéia do “erro de português”, não foi?
– Exatamente – confirmei.
– Todo e qualquer uso que escapasse daquelas poucas regras apresentadas pelas gramáticas tradicionais era considerado um “erro”, um “desvio”, uma “corrupção” da língua. – O que tradicionalmente se chama de “erro”, então, é apenas um uso diferente do que está previsto na gramática? – concluiu meu amigo.
– É isso mesmo – respondi. – Quando a gente analisa cientificamente esses supostos “erros”, descobre que todos eles têm uma lógica, uma razão de ser, obedecem a regras bem coerentes. Afinal, nada é por acaso. Em vez de acusar alguém de estar falando “errado”, é mais justo e democrático procurar conhecer a gramática da língua daquela pessoa, compreender suas regras, que são diferentes das regras tradicionais.
– Será que estou entendendo? Você pode me dar um exemplo? – pediu ele.
– Claro… Veja bem: quando alguém diz broco, grobo, chicrete onde a gramática tradicional exige a pronúncia bloco, globo, chiclete, essa pessoa não está falando assim porque decidiu “desobedecer” as regras tradicionais ou porque é tão “burra” e “atrasada” que não consegue falar “direito”. O que acontece é que, simplesmente, na gramática da variedade de língua falada por esse cidadão, não existem encontros consonantais com l, mas apenas com r. Nessa gramática, as regras de combinação dos fonemas, dos sons da língua, são diferentes. Além disso, essa pronúncia considerada errada está obedecendo, na verdade, a uma regra bem antiga da língua portuguesa, inclusive literária…
– Como assim?
– A palavra branco vem de um germânico blank; o nosso cravo vem do latim clavu; praga vem do latim plaga; fraco vem do latim flaccu… Como você pode ver, todas essas palavras, na sua origem, tinham um l, mas acabaram ganhando um r ao se incorporar na língua portuguesa.
– Quer dizer que quem diz broco, grobo, chicrete na verdade está simplesmente dando continuação a uma tendência antiga da língua… Puxa vida, que surpresa! E como fica a escola diante dessa história toda?
– No meu entender, a escola deve ensinar, sim, a chamada norma-padrão, mas não deve fazer isso desprezando, denegrindo, rebaixando as outras normas que existem na língua. O professor deve tomar conhecimento da pluralidade, da heterogeneidade característica de todas as línguas vivas e reconhecer que aquele tipo de língua que ele vai ensinar na escola é apenas uma das múltiplas possibilidades de combinação oferecidas pelo sistema da língua portuguesa. Uma variedade que goza de prestígio social mas que, lingüisticamente, não tem nada de melhor nem de mais bonito. Outras combinações também existem e são empregadas. Aliás, a chamada norma-padrão é extremamente minoritária, é empregada por um número muito reduzido de pessoas. As outras variedades, as variedades não-padrão, é que são, realmente, empregadas pela maior parte do nosso povo.
– É engraçado você dizer isso – retomou meu amigo -, porque quando eu era criança, na escola, eu sentia mesmo que aquelas regras da gramática não tinham nada a ver com a língua que eu falava em casa, na rua e até mesmo na escola, fora da sala de aula. Seria exagero dizer que a língua ensinada pelos professores é uma língua estrangeira?
– Tem muito especialista que diz isso mesmo, que a norma-padrão ensinada na escola é uma língua estrangeira, é uma segunda língua, com regras gramaticais muito diferentes da língua materna que a criança já traz de casa. Se o professor se der conta disso, se ele admitir que as coisas são assim, talvez ele possa assumir uma atitude diferente, menos preconceituosa em relação à língua que os alunos trazem de casa e à língua que ele vai ter de aprender na escola. Por sinal, essa é justamente a atitude nova proposta pelo Ministério da Educação nos seus Parâmetros Curriculares Nacionais. Na minha opinião, a escola não deve apenas ensinar a norma-padrão: deve também apresentar ao aluno o quadro verdadeiro da situação lingüística do país, apresentando exemplos de língua falada e escrita, formal e informal, rural e urbana, literária e não literária, culta e não-culta, e assim por diante, explicando as situações em que cada uma dessas modalidades pode ser usada e mostrando também o grau de prestígio ou não-prestígio social atribuído a cada uma delas.
– Puxa! A tarefa do professor vai ficar muito mais difícil! – comentou meu amigo.
– Pode ser, mas também vai ficar muito mais democrática, pluralista e humana – enfatizei. – Afinal, já ficou mais do que provado que o ensino tradicional, conservador, preconceituoso, não dá resultado nenhum. As pessoas saem da escola depois de onze anos de estudo sem conseguir escrever com tranqüilidade e segurança um texto qualquer de quinze linhas. A baixa auto-estima lingüística fica evidente nas declarações tão comuns de tanta gente inteligente que diz “eu não sei português”. Ora, se não soubesse, não teria produzido essa simples frase… A tarefa do professor será justamente elevar a auto-estima lingüística do futuro cidadão, mostrar a ele que ele já sabe português desde o berço, e que sua língua materna é tão valiosa quanto a língua que ele vai aprender na escola.
CARTA DE MARCOS BAGNO PARA A REVISTA VEJA 4 de novembro de 2001
A DUPLA PERSONALIDADE LINGÜÍSTICA DA MÍDIA IMPRESSA: